Gosto
muito do que Olavo de Carvalho, da maneira como ele questiona nas
entrelinhas das resenhas elaboradas, da clareza das palavras, pois ele
sabe deixar de fácil leitura até para os que não gostam muito de
filosofia. O bom dos seus textos é que ele aborda a realidade para a realidade dentro da atual visão de sensibilidades que estamos passando. Nessa
resenha eu concordo com algumas passagens e outras não. Mas como ele
sugere um discurso inteligente sobre a nova era e revolução cultural,
tem muita crítica legal e muito pano pra manga pra ficar horas e
horas trocando idéias mentais no decorrer da leitura. Deixo vocês mais a
vontade com ele e com a imaginação e os pensamentos em órbita total.
A NOVA ERA
E A REVOLUÇÃO CULTURAL
AS IDÉIAS de Capra e de Gramsci são puras ficções, mas nem
por isto as semelhanças entre elas são mera coincidência. A simples listagem
basta para por à mostra uma raiz comum:
1 - Ambas essas correntes são radicalmente "historicistas"
— quer dizer: para elas, toda "verdade" é apenas a expressão
do sentimento coletivo de um determinado momento histórico. O que importa
não é se esse sentimento coletivo capta uma verdade objetivamente válida,
mas, ao contrário, ele vale por si como único critério do pensamento correto.
2 - Em ambas, o sujeito ativo do conhecimento não é a consciência
individual, mas a coletividade. Elas divergem somente, na superfície,
quanto à delimitação desse místico "sujeito coletivo": para
Capra, é "a humanidade", ou, mais vagamente ainda, "nós"
( é característico dos doutrinários da Nova Era, como Capra ou Marilyn
Ferguson, dirigir-se a um auditório universal na primeira pessoa do plural,
de modo que não sabemos se quem fala é um Autor divino ocultando sua supra-personalidade
num plural majestático, ou se é a autoconsciência coletiva da humanidade ).
Para Gramsci, o sujeito coletivo é o "proletariado", ou, mais
propriamente, o conjunto dos intelectuais orgânicos que o "representam",
isto é, o Partido.
3 - Ambas insistem menos em provar alguma tese do que em
induzir uma "mudança de percepção", uma virada repentina que
faça as pessoas sentirem as coisas de um modo diferente. Com Capra
e Gramsci ninguém pode discutir, tese por tese, demonstração por demonstração:
a conversão tem de ser integral e súbita, ou não se realiza jamais: capristas
e gramscistas são "convertidos" ou "renascidos", que
num determinado instante de suas vidas "viram a luz" mediante
uma rotação instantânea do eixo de sua cosmovisão. O decisivo, em ambos
os casos, não é a argumentação racional, mas uma adesão prévia,
volitiva ou sentimental: o sujeito "sente-se" de repente, como
um todo, identificado com a Nova Era ou com a causa do proletariado, e
em seguida passa a ver os detalhes de acordo com o novo quadro de referência.
4 - Ambas são "revoluções culturais". Pretendem
inaugurar um novo cenário mental para a humanidade, no qual todas as visões
e opiniões anteriores serão implicitamente invalidadas como meras expressões
subjetivas de um tempo que passou. Como, de outro lado, a nova cosmovisão
também não se apresenta como verdade objetivamente válida e sim apenas
como expressão de um "novo tempo", já não se pode confrontar
as idéias de hoje com as de antigamente para saber quem tem razão: o critério
de veracidade foi substituído pelo da "atualidade", e como toda
época é atual para si mesma, cada qual constitui uma unidade cerrada,
com suas idéias que só são válidas subjetivamente para ela. Platão tinha
as idéias do "seu tempo"; nós temos a do "nosso tempo"
— cada um na sua.
5 - A dimensão "tempo" é assim absolutizada, reinando
sozinha num mundo de onde foi extirpado todo senso de permanência e de
eternidade. Em Gramsci, a amputação é explícita; em Capra e na Nova Era
em geral, implícita e disfarçada pela verborréia mística. Após essa cirurgia,
a mente humana torna-se incapaz de captar o que quer que seja das relações
ideais que, para além do real empírico, apontam para a esfera do possível,
da infinitude, do universal. O empírico, o fato consumado, o horizonte
imediato das preocupações práticas — pessoais ou coletivas —
torna-se o extremo limite da visão humana. O "cosmos" de Capra
e a "História" de Gramsci são campânulas de chumbo que prendem
a imaginação humana num mundo pequeno, artificialmente engrandecido pela
retórica.
6 - Com o senso da eternidade e da universalidade, vai embora
também o senso da verdade, a capacidade humana de distinguir o verdadeiro
do falso, substituída por um sentimento coletivo de "adequação"
ao "nosso tempo". A "supra-consciência" da Nova Era
e o "intelectual coletivo" de Gramsci têm em comum a mais absoluta
falta de inteligência. Para ambos vale o que o jornalista Russel Chandler
disse de um deles:
"A maior capacidade da mente humana é a sua
habilidade de discriminar entre o que é verdadeiro e o que é falso,
distinguir o que é real do que é ilusório ou aparente. Mas a ‘supraconsciência’
da Nova Era está programada para ignorar essas distinções."
7 - Dissolve-se também a autoconsciência reflexiva e crítica,
pela qual o indivíduo humano é capaz de sobrepor-se às ilusões coletivas
e julgar o seu tempo. Fechado na redoma do momento histórico, é
vedado ao indivíduo enxergar para além dele, exercer os privilégios de
uma inteligência autônoma, ter razão contra a opinião majoritária —
seja ela a opinião conservadora do establishment ou o anseio coletivo
dos ambiciosos insatisfeitos.
8 - A depreciação da consciência individual vem com a negação
do critério da evidência intuitiva como base para julgar a verdade. Reduzida
a seu aspecto psicológico, imanente, a intuição torna-se apenas uma experiência
interna como qualquer outra, incapaz de evidência apodíctica. Confunde-se
com o sentimento, com o pressentimento, com a vaga impressão e com a fantasia.
Daí a necessidade de um novo critério, que será, na Nova Era, a fantasia
mesma, adornada com o título de intuição mística, e na Revolução Cultural
de Gramsci o sentimento coletivo do Partido, detentor profético do sentido
da História.
As semelhanças são tão substanciais que, perto delas, as
diferenças se tornam meramente adjetivas. A filiação comum remonta, no
mínimo, ao mito mais querido da ilusão moderna: o mito da Revolução, do
"apocalipse terreno", que, num giro súbito de todas as aparências,
transfigurará o mundo, inaugurando um Céu na Terra. O mito da Revolução
é a cenoura-de-burro que há séculos mantém a humanidade no encalço do
comboio da História disparado em direção a uma miragem, sem poder atingir
outro resultado senão a aceleração do devir, que, não chegando a parte
alguma, acaba sendo entronizado ele mesmo como supremo objetivo da vida:
o acontecer pelo acontecer, a eternização do fluxo das impressões, a redução
do homem ao ser empírico preso a uma girândola sem fim de "experiências"
e "momentos" atomísticos. Em termos orientais, que o linguajar
da Nova Era repete sem compreender-lhes o sentido, é a absolutização da
Maya, a prisão eterna no círculo do samsara.
Nem as idéias de Capra nem as de Gramsci necessitam de refutação.
Sua interpretação ordenada e clara já vale como refutação. O simples desejo
de compreendê-las basta para exorcizá-las. São idéias que só podem prosperar
sob a proteção de uma névoa de ambiguidades, e só encontram terreno fértil
nas almas que anseiam por ilusões lisonjeiras, em cujo colo macio possam
esquecer sua própria miséria, a miséria de toda vaidade.
FONTE: http://www.olavodecarvalho.org/livros/nenovaera.htm